Qual o prazo de validade de uma informação? Alguém que cumpriu pena e quitou sua dívida com a sociedade tem o direito de dissociar seu nome do crime cometido no passado? Personalidades públicas podem pretender que determinados fatos de suas vidas sejam esquecidos? Essas são algumas das perguntas que juristas e especialistas em direitos civis precisarão responder em meio ao debate suscitado por recentes decisões judiciais que consideram o direito ao esquecimento.
Embora não seja novidade no Brasil, onde especialistas consideram o conceito uma consequência do direito constitucional à privacidade, a tese do direito ao esquecimento vem despertando cada vez mais atenção, em parte devido à polêmica em torno dos processos em que os direitos à imagem e à vida privada se chocam com os direitos à plena liberdade de expressão e de informação.
Em maio deste ano, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou que a empresa Google deve remover de seus resultados de buscas os links que remetam para páginas com informações pessoais a respeito de cidadãos europeus que não quiserem ver seus nomes associados a fatos que eles próprios considerem inadequados, irrelevantes ou descontextualizados. Para o tribunal, os cidadãos do bloco têm o direito a serem esquecidos. Essa conclusão que obrigou a empresa a disponibilizar aos usuários de 32 países europeus um formulário a ser preenchido por quem quiser “ser deixado em paz”. Em seu site, a Google informa que vai “avaliar cada pedido individualmente, tentando equilibrar os direitos de privacidade do indivíduo com o direito do público de conhecer e distribuir informações”.
“O direito ao esquecimento é uma forma de assegurar o direito à privacidade, de maneira que certas ações do passado não possam ser sempre revolvidas”, declarou à Agência Brasil o desembargador federal Rogério de Meneses Fialho Moreira, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), em Recife (PE). Moreira foi o coordenador científico da 6ª Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.
Durante a jornada, realizada em março de 2013, especialistas aprovaram o Enunciado 531, destacando que a dignidade humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. O enunciado não é uma norma a ser obrigatoriamente seguida, mas tende a influenciar decisões judiciais, servindo de orientação para a interpretação do Código Civil.
Em vigor desde 2002, o Código Civil brasileiro não faz menção direta ao direito ao esquecimento, mas assegura que a vida privada é inviolável e, “salvo quando autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, publicação, exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento”.
Com base nesses pressupostos, em novembro de 2009, a 2ª Turma Recursal de Belo Horizonte (MG) condenou a revista Consultor Jurídico a retirar de seu site uma notícia sobre a condenação por negligência de um cirurgião plástico. Na ação, o médico não questionava a veracidade da notícia, mas sim o fato dela, a seu ver, não permitir que o leitor entendesse todo o caso e as razões de sua condenação. O médico também sustentava que a notícia já tinha cumprido sua função informativa, não havendo razões para a “exposição eterna da intimidade e imagem de um indivíduo”.
No Enunciado 531, os doutrinadores apontaram que o direito ao esquecimento não visa a garantir a ninguém a prerrogativa de apagar fatos ou reescrever a própria história. Segundo o desembargador Rogério de Meneses Fialho Moreira, os pedidos a esse respeito devem ser analisados caso a caso, levando-se em conta a finalidade de se relembrar fatos antigos e a pertinência disso para o debate público. Para justificar a aplicação do direito ao esquecimento, alguns especialistas, como o próprio desembargador, citam o direito de um ex-detento que já cumpriu sua pena a não ver seu nome associado, de forma descontextualizada, ao crime que cometeu, salvo se isso for relevante.
Poucos meses após a aprovação do Enunciado 531, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aplicou a tese do direito ao esquecimento pela primeira vez em sua história. Ao julgar dois recursos especiais ajuizados contra reportagens de uma emissora de televisão, o tribunal assegurou que as pessoas têm o direito de serem esquecidas pela opinião pública e pela imprensa se assim desejarem.
Um dos recursos foi ajuizado por um dos absolvidos da acusação de participar na Chacina da Candelária, em 1993, no Rio de Janeiro. Para os magistrados, a menção ao nome do reclamante em reportagem sobre o caso lhe causou danos à honra, mesmo após esclarecida sua absolvição. O outro recurso foi apresentado pelos irmãos de uma mulher, estuprada e morta em 1958. Eles alegavam que uma reportagem exibida pela mesma emissora tinha reavivado antigos sentimentos de angústia, dor e revolta na família da vítima.
Relator do recurso especial ajuizado pela família da Aída, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão, apontou que os condenados que já cumpriram suas penas, os absolvidos por uma suspeita, as vítimas de um crime e também seus parentes têm direito ao esquecimento, se assim desejarem. Mas ponderou que o tema transcendia a responsabilidade do STJ por envolver uma controvérsia constitucional, opondo direitos como o da liberdade de expressão e de informação ao de privacidade.
“O conflito entre liberdade de informação e direitos da personalidade ganha a tônica da modernidade […] desafiando o julgador a solucioná-lo a partir da nova realidade social […] A ideia de um direito ao esquecimento ganha mais visibilidade, mas também se torna mais complexa quando aplicada à internet, ambiente que, por excelência, não esquece o que nele é divulgado e pereniza tanto informações honoráveis quanto aviltantes à pessoa do noticiado”, assinala o desembargador, apontando que os veículos de informação modernos, principalmente a internet, tendem a manter um “resíduo informacional” muitas vezes desconfortável.
Alegando que a atividade jornalística se tornaria impraticável se, ao apurar um caso de assassinato, o profissional fosse impedido de mencionar o nome da vítima e as circunstâncias do crime, o ministro negou o pedido de indenização por danos morais feito pelos irmãos da vítima. “O esquecimento não é o caminho salvador para tudo. Muitas vezes é necessário reviver o passado para que as novas gerações fiquem alertas e repensem alguns procedimentos de conduta do presente”. Salomão, contudo, foi voto vencido e a 4ª Turma do STJ definiu que a emissora deveria indenizar a família da mulher estuprada por ter veiculado sua imagem.
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