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O Ciúme de Deus

Querida Jianny,


Não sei por onde começar essas trêmulas, amargas e desesperadas linhas. Estou aflito! Devo-lhe confessar que o navio não é de boa origem, está bem aquém do que nos tinham prometido. Imagino que nos venderam coelhos por cães. Todos reclamam dos perigos, mas o capitão é muito acolhedor. Sempre nos passa otimismo e força, quando não está bêbado. É ele quem escreve pra mim, nos tornamos amigos.


 Não poderia deixar de lhe revelar que o capitão repete copiosamente todos os dias que adora navegar sozinho, pois, pra ele, quem trabalha sozinho, trabalha pra três. Brinco com ele dizendo imaginar ser uma forma de esconder sua velhice exaltando aparente vigor físico.


Se tudo correr bem, estaremos no Brasil no próximo mês. Não vejo a hora de recomeçar minha vida. Casoria, seu ar e seus campos belos, sempre estará no meu coração, porem devo dizer-lhe mais uma vez que não se pode jurar amor eterno a quem te expulsa: essa cidade cuspiu-me para longe da Itália. Como sofri!


 Farei de tudo para que possa trazê-la para essa terra nova. Seremos mais felizes ainda. Ontem o capitão me disse que lá, as pessoas são muito alegres, dançam exageradamente e celebram a vida como ninguém. Quando lhe perguntei as razões de tanta alegria, ele me disse que no Brasil os dias são bem mais claros que na Europa, e me ofereceu um pouco de bebida.


Quero tranquiliza-la de que seu pai e sua mãe estão bem. Guardo-os mais bem e com mais cuidado que a noiva viúva com o seu anel revelador do ciúme de Deus. Estamos repartindo a comida e, se tudo estiver nas mãos de dele, não passaremos fome.


O frio, esse não tenho poderes sobre ele. Mas minha idade menor e meu amor eterno por você fazem-me ceder, todas as noites, o pequeno lençol que tenho, a fim de que eles, quem você tanto ama, não sofram com a frieza do Atlântico.


Permita-me reprová-la mais uma vez, pois Deus é testemunha de que queria que estivesse comigo aqui. Nessa solidão em que me encontro, saiba que nem as tempestades de neve mais fortes deixariam minha história tão triste. Entendo sua vontade de ajudar no nosso futuro lar, mas o dinheiro que conseguirá nas plantações de uva desse outono nunca apagará as lágrimas que derramo à noite, quando sozinho deitado nestas caixas de mercadorias.


Mas eu a amo! Fique certa de que nossa história é a razão de meu suspiro, fonte de minha esperança e alicerce de meus sonhos. Ontem sua mãe estava escolhendo o nome do futuro netinho, e seu pai pensa em fazer uma nova Itália no Brasil, com mais oportunidade e mais liberdade para todos que quiserem ser livres.


Quentes beijos, meu amor eterno. Intensidade e força para que possamos suportar essa ausência, jamais renúncia.


Schiadelly


– Depressa, Schiadelly! Não perca tempo! Temos de concluir os trabalhos antes do anoitecer. Se quiser continuar nesse emprego, terá de ser mais rápido!


– Sim, pode deixar, pode deixar! Perdoe-me. Apenas me detive ao que encontrei nessa caixa.


– Não demore! Devemos acabar logo com isso. Em todos esses anos nesse serviço portuário, juro que não gosto de naufrágios! Meu pai morreu dessa forma, me deixa triste. Mas o que tem aí?


– Uma carta.


– Uma carta? Como se manteve à fúria do mar? Meu deus! Como a ironia nos comanda! Hoje não beberei no caos! Do que ela fala?


– Vamos abrir! Toma, olha… eu não sei ler. A Itália me negou a mais simples educação.


– Sem problemas! Não fique envergonhado!


– Poderia ler? Ou acha que seria falta de respeito nosso adentrar a intimidade de alguém?


– Acho que não. Afinal, eles estão mortos.


– Concordo! O que ela diz?


-Deixe-me ver… ela diz assim: Querido Schiadelly…


Io conosco la tua strada ogni passo che farai. Le tue ansie chiusa e ivuoti sassi che allontanerai. Senza mai pensare che comme roccia io rittorno in te …  (Zizi Possi)


 


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