Depois de lhe contar o que tinha acontecido, percebi que Michelle estava indignada com o tratamento que Mário tinha sofrido. Conhecendo-a de longa data, vi dessa vez algo diferente de seu jeito doce: uma linha de revolta, uma insatisfação tremenda com o que estavam fazendo àquele rapaz que nos dois conhecíamos tão bem.
Sem saber se poderia ajudar ou se acabaria atrapalhando, disse pra ela que o que Mário passou no Shopping não é nem sombra do que eu presenciava quando era criança.
Nos bairros em que cresci, Preventório e Ivete Vargas, era comum ver Mário ser humilhado, maltratado e algumas vezes até roubado no seu pouco patrimônio financeiro que tinha. A malandragem e os delinquentes não costumavam perdoar. No submundo de Rio Branco, a maldade humana tem outros temperos.
Por fim, disse pra ela que a Promotoria Especializada na Defesa da Cidadania do Ministério Público do Acre tinha aberto investigação e que “bondosos” advogados estavam se dispondo a mover ação de reparação de dano. Se o Shopping tivesse culpa, iria pagar.
Pra minha surpresa, a moça, que esse ano inicia o curso de Ciências Sociais na UFAC, me disse que eu me equivocava redondamente. Sua análise era outra, seu desgosto passava por outros caminhos, outros horizontes.
Não entendi muito bem o que ela quis dizer. Sem pressa de ir pra casa, depois do lanche que tínhamos feito, pedi a ela que me explicasse melhor. Já era noite, estava quente e a poeira das ruas levantada pelos carros que passavam me dava pouca vontade de refletir.
Ela então me disse:
Se for realmente comprovado o episódio, tenho a revelar que é um absurdo, uma afronta à dignidade humana. Mas o que me deixa mais atordoada é que ninguém faz alarde pra uma outra prática odiosa e desumana que ocorre aqui em Rio Branco. Quanto a esse outro mal, não vemos advogados sensibilizados, promotores querendo dar uma de herói, não é manchete de jornais, nem muito menos alvo de protestos nas redes sociais.
A cidade está cheia de deficientes sociais. Cheia de pessoas que também são impedidas de entrar no Shopping, de comprar um presente paro filho ou pra mãe.
O Zé que vigia carro no centro e vende balas no sinal também não pode entrar lá. Tem dificuldade até de voltar paro o Taquari à noite, não tem leite na geladeira e ameaça o filho, quando chora com fome. Quando a mãe dele morreu, ficou triste em saber que não se alugava caixão.
A Maria do Ayrton Senna também jamais poderá entrar no Shopping. Faz dez anos que está sem os dentes da frente, tem sandália com prego na correia, sente fortes dores nas pernas por causas das varizes, e mora perto de um local que não pode ver chuva.
O “Chiquim” do Ilson ribeiro jamais ousou colocar o pé lá. Queria mesmo era arrumar as goteiras da casa, comprar uma fechadura para porta e se livrar daquela cama velha sustentada por tijolo. Pela televisão, pôde ver que o Shopping é bonito. Do episódio com Mário, se encheu de esperança em um dia ter a voluntariedade de um advogado para tirar seu filho da penal, lá há três anos por ter roubado uma lata de sardinha.
O “Tonhim” do Belo Jardim também não ousaria triscar os pés lá. Anda meio doente, mas parece que daqui a seis meses, quando pegar os exames, vai saber que dor é aquela que sente no peito de manhã. Além do mais, as zeladoras ficariam chateadas com a lama que traria por morar em um bairro esquecido e abandonado, frequentado apenas pelos cínicos dos candidatos em época de eleição. Se não prenderem mais ninguém, parece que o Programa As Ruas do Povo vai chegar até lá… rs.
Havia mais anônimos a citar, mas percebi que ela não queria me cansar, nem que eu pensasse que essa indignação já era resultados dos livros que estava lendo para chegar bem à faculdade. Deu-me, com os olhos mais abertos, a certeza de que eu não tinha como discordar disso.
Fomos cada um para sua casa e, no outro dia, eu estava comprando no Shopping um presente para minha filha. Achei-o caro, e nunca gostei de ir ali por causa daquele cheiro de comida que invade as lojas. Mas eu estava lá. Sim eu estava ali. Lembrando-me do que Michelle tinha dito, pensei: somos apenas dinheiro com um coração.
Somos dinheiro com um coração!
Por Francisco Pedrosa f-r-p@bol.com.br
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