Categories: Crônicas de um Francisco

Meu primeiro amor

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Roberto Vaz

Dezessete de dezembro é para mim uma data importante e triste. Importante porque nasceu minha irmã mais velha; triste porque morreu a escritora que mais me impressionou nesse mundo.


Marguerite Yourcenar é uma senhora dessas que demoram mil anos para aparecer alguém que possamos gastar mais mil anos para supor que tenha chegado aos pés dela. Seus escritos, sua forma de pensar, sua delicadeza nos versos nos empolgam e nos fazem sentir. Uma belga afrancesada que sorria com o vento forte dos Alpes e cantava na poeira seca do deserto do Egito.


De pai migrador, “perâmbulo” de um mundo sem quintais, bandeiras, nacionalismo ou outras besteiras que algum maluco criou, cedo, cedo, desenvolveu a arte de ler o mundo com as palavras. Deu-nos, como que matando a própria carne, a experiência de versos que deixávamos de lado quando fechávamos os olhos e dormíamos. 


Eu não a conhecia. Foi um acidente! Tinha ido comprar uns livros em uma promoção lá na Livraria Paim (sabe como é acadêmico de história, hereditariamente quebrado e vivendo de promoções), quando vi um livro envelhecido e cheio de sardas, escondido debaixo de uma dessas modinhas literária de autoajuda que te ensinam que o abismo é profundo, que não devemos nos matar e que as flores podem nos encher de alegrias.


Chamava-se Memórias de Adriano. Meu deus! Que livro! Nunca tinha lido nada igual. Meus dedos nunca folhearam algo tão poderoso. De uma inteligência, modernidade, mistério e altas doses de realidade tão grande que imaginei que depois da leitura desse livro é que realmente aprendi a ler. Eu nasci, então. Antes tateava a fria sombra do mundo.


Depois disso, passei a vasculhar a vida dessa dama. Imagino que se tivesse dinheiro, teria viajado a todos os locais que ela pisou os olhos. Li outras obras e, cada dia mais, me impressionava o calibre literário dela. Tinha  a arte do realismo sonhador, do trágico engraçado, do romântico cruel, do necessário obsoleto.


Lembro-me de que uma vez buscava desesperadamente ler uma obra dela, chamada A obra em Negro, e não conseguia encontrar em canto algum. Para minha surpresa, passando duas semanas na agradável cidade de Sena Madureira, na biblioteca pública de lá, no meio de um monte de papel inútil, o livro estava lá.


Acho que essa foi a única vez que tive vontade de ser um ladrão.


Quando criança, sonhava com a política. Mas essa carreira, para mim, era algo nobre, algo que muda uma situação, garante um futuro, assegura novas gerações. Eu sei que me enganei. Mas sangrando se conhece o sangue.


Em duas semanas tive que correr. Eu deveria ler o livro antes de ir embora. Imaginei impossível, pelo volume de páginas, mas para meu espanto, demorei apenas quatro dias. Confesso que até pensei em ler novamente.


Antes que alguém pense mal dessa minha tenra memória, devo dizer algo tão importante quanto. Não vou aqui desconsiderar os “brasuqueiros”. Adoro também. Sempre achei nossa literatura muito boa, quase completa. Amo todos os escritores brasileiros que li.  E posso falar com certa propriedade, pois conheci “alguns” antes dos doze anos.


Mas Marg é diferente, é claro que falo de mim, haja vista minha incapacidade lógica de expressar opiniões outras que respeito, mas desconheço. Sua batuta sopra meu espirito, sua modicidade agressiva contagia, sua invasão à mente humana reafirma o que mais tarde ela chamaria de “Labirinto do Mundo”.


Desculpem-me todos os grandes gênios literários, do Leste europeu aos dramáticos dias secos dos Andes, mas devo confessar que vocês, eu tive o prazer imensurável de ler, Marguerite, eu tive a doce sensação de que não estava só.


Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA     f-r-p@bol.com.br


 


 


 


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