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As vinte sete formas de amar

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NO LAR


– Carla, já estou pronto! Faz algum tempo que não vamos ao parque central. Espero que não queira demorar lá. À noite, sairemos para jantar e comemorar seu aniversário. Não quero estar tão cansado. Guardo coisas boas pra você, meu amor.

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– Não me faça rir, Marcos! Bem sabe que não gosto daquele local! Se não fosse por nosso filho, eu nunca pisaria ali. Não tenho bons motivos para gostar de um ambiente como aquele.


– Lá vem você de novo! Que motivos? Sei que já perguntei sobre isso algumas vezes, e você nunca falou. Não sei por que guarda isso de mim. Eu poderia ajudar.


– Tenho razões para não falar dessas coisas. Conheço o marido que tenho, e sei o quanto ele é ciumento. Revive o passado, como se fosse o acontecimento do minuto vivido.


– Você sempre foge com esse argumento. Tudo bem! Sei de meus defeitos! Conte-me! Prometo que irei me controlar. Meu ciúme é forte, mas essa dor no peito, essa curiosidade é pior. Vamos fale. Esse mistério me sufoca.


– Deixe de drama! Não me venha com esse teatro. Você não precisa disso. Sente-se! Se quiser mesmo saber, saiba que já não aguentava mais guardar isso. Apenas garanta que entenderá que isso não mais existe em meu espírito.


– Fique tranquila. Eu sou o seu presente. A brisa que frequenta sua madrugada. O cão que espera seu dono no portão em dias de chuva,


– Certo. Ouça!


NO PARQUE


– Mamãe, tenho sede. Poderia me dar um pouco de água. Os campos estão verdes, e tenho dificuldade de cruzá-los. O parque está agitado! Como é bom correr e se sentir livre. Posso brincar um pouco mais?


– Só mais um pouco, meu amor! Seu pai não quis ficar conosco. Temos de voltar cedo pra casa


– Por que?


– Ah Inácio, hoje não foi um dia fácil! Mas acredito que tenhamos superado isso. Hoje é meu aniversario! Acho que ele foi preparar alguma surpresa. Precisamos fingir que não sabemos disso. Faz parte o encanto.Vá, enquanto brinca mais, termino de ler meu romance.


.- Obrigado mamãe. Boa leitura! Como se chama o livro?

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– As vinte e sete formas de amar. É a única coisa boa que ganhei de uma pessoa que tanto mal fez às nossas vidas.


NO HOSPÍCIO


– Esse homem não deveria estar entre nós! É um assassino, não um louco. Temo pelos outros pacientes que possuem justas razões para permanecer aqui. Espero que morra logo!


– Ora, deixe de resmungar! Você é apenas um técnico em enfermagem. Quando for médico, poderá avaliar melhor quem deve ou não ficar aqui nesse hospício nojento.


– Ora, ora, digo eu! Você ficou com raiva porque não lhe disse antes que ela tinha namorado. O que queria? Eu nem sabia que você gostava dela. Não há motivos para ser tão indelicado. Poupe-me com suas crises. Seus problemas não sou eu. E os meus não são você!


NO LAR



Vamos, Carla! Estou nervoso de curiosidade.


– Certo! Leonardo foi meu grande amor na juventude. Eu o amava expressivamente. Foi meu primeiro homem. Nele veio meu primeiro beijo. Descobri as coisas do mundo como ele.  Sua imagem era para mim o que há de mais suave. Não era tão bonito, mas eu o tinha como o mais belo, pelo simples fato de imaginar que ele fosse meu.


– Certo, certo. Não estou com ciúmes, mas se puder pular essa parte e esses detalhes, eu agradeceria muito.


– Ah sim, claro! Sei que não está com ciúmes. Sabendo disso, vou ter mais cuidado com as palavras. Escute!


NO PARQUE


– Aceita uma bala? Também trouxe sorvetes e doces.


– Obrigado! Parecem muito gostosos. O senhor é muito gentil! Vamos ver quem chega primeiro à barragem?


– Tenho mais guardados ali na minha mochila. Vamos lá?


NO HOSPÍCIO


– Você não fez o que mandei! Os remédios não eram esses. Onde está sua cabeça rapaz!


– Perdoe-me doutor! Não sei por que agi assim. Minha falha não faz parte de meu repertório. Sou dedicado e desejo o melhor para todos os pacientes.


– Certo, certo, deixe de bajulações e autoconfiança. Porte-se e preste mais atenção nas suas obrigações.


– Obrigado doutor! Apenas gostaria de lhe informar que a paciente da sala 3 não dormiu ontem à noite. Mesmo com o receituário, parece que não há sinais de melhoras.


– Quem disse que estamos aqui para curar essas pessoas? Quem disse que elas têm cura? Quem disse que você é médico? Quem disse que tenho obrigação de ouvi-lo. Suma daqui! Deixe-me! Não o quero mais!


NO LAR


– Após alguns anos de namoro, decidimos aumentar o grau de nosso relacionamento. Com indiretas e outros caprichos femininos, consegui mostrar pra ele que precisávamos de algo mais sólido. Ele entendeu a situação e me propôs casamento.


Marcamos data, tudo parecia belo e meigo.


– Continue… por que parou?


– Ele me deixou esperando na igreja por mais de quatro horas. Na noite passada, tinha acampado com os amigos e se esqueceu de mim.


– Foi no parque para onde vais agora com Inácio?


– Sim! Nessa festa deplorável, ele era o único de homem nesse acampamento. Fui a última “a saber” de seus relacionamentos “extras”, juntados, triunfalmente, em sua despedida. Ele menosprezou o mais além. 1995, não esquecerei essa data.


– Espera! É o ano que você teve Inácio. Então o filho pode ser dele?


NO PARQUE


– Por favor, seu guarda, estou desesperada! Não consigo encontrar meu filho. Pediu-me para brincar ali no parque e não o vi mais.


– Ele foi sozinho? Qual a idade dele?


– Sete. Eu o vigiava com os olhos, mas me perdi nos momentos finais desse maldito livro aqui.


– Vamos informar aos guardas da entrada. Começaremos a busca por ele agora. Mantenha-se calma. Sei que é difícil, mas tudo correrá bem.


NO HOSPÍCIO


– Como você está? Parece mais alegre e feliz, depois da reforma!


– Ah sim, doutor! Estou bem, conheci novas pessoas que nunca pude, por causa das dimensões do prédio e de sua cruel separação de espaços.


– Separa-se por conveniência e propósitos. Pensamos sempre no melhor de vocês.


– Certo. Deixe-me dizer: tomei todos os remédios, não gritei à noite e meu quarto está bem limpo. Doutor, gostaria de lhe fazer dois pedidos. Por favor, é muito importante pra mim.


– Diga Carla! Se estiver ao meu alcance, e se isso for bem pra sua melhora, eu realizarei seus pedidos.


NO LAR


– Não, não, não! Depois dele, conheci outra pessoa antes de você? Morreu em um acidente aéreo. Ele é o pai do meu filho. Deus me livre! O que você está dizendo?


– O que quer que eu diga? Pelo pouco que conheço de você e pelo muito que já falou dele agora, você não teria forças pra viver algo tão rápido assim. Não procure me enganar! Ajudei a criar uma lembrança que sempre te fez pensar nele. Não foi honesta comigo.


– Quer me fazer chorar mais ainda com tanta injustiça? Acha que seria capaz disso. Já não basta ter sofrido esses anos todos com ameaças dele de destruir a mim e a meu filho? Acha que um pai faria o que ele jurou realizar?


– Ele ameaçou matar seu filho… quer dizer, nosso filho? Meu Deus por que não me disse isso? Jamais permitiria que ele tocasse um dedo em você.


NO PARQUE


– Aceita uma bala?


– Não obrigada. Não gosto de oferecer essas coisas pra minha filha. Desculpe-nos, temos de ir.


– Quem é ela mamãe? Parece despreocupada com o mundo, com o corpo e com o tempo.


– Oh, minha filha! Esta senhora perdeu seu filho aqui há muito tempo atrás. Nunca acharam o menino, mas conseguiram prender o psicopata infantil. Acredito que ela não ficará muito tempo aqui molestando as pessoas. O hospício é o melhor lugar pra ela.


NO HOSPÍCIO


– Doutor, não terminei de ler meu livro. Sei que o senhor imaginou que ele era o motivo de minhas crises. Acredite! Ele ajudava a me confortar. Poderia me devolver?


– Qual o outro pedido? Tomando seu estado e sua saúde, esse eu posso realizar.


– Obrigado doutor! O senhor é um anjo. Deixe-me dizer o outro pedido: enquanto faziam as reformas no prédio, soube que há boas pessoas no outro pavilhão. O senhor é novo aqui, mas acredito que também discorde desse isolamento. Gostaria de conversar com uma pessoa que conheci. Ele se encontra no pavilhão “”M”.


– Bom, devido à ampliação do prédio, lá só temos duas pessoas por enquanto, dois homens. Qual dos dois quer ver, Marcos ou Leonardo?


NO LAR


– Por que acha que mudei de país? Não teria conhecido você nunca. Voltei por causa de meus pais que, envelhecidos, começavam a sentir a morte mais próxima. Se não fosse por eles, eu nunca teria conhecido você.


Não chore, por favor! Vamos, sejamos fortes! Você prometeu pra ele esse passeio há mais de mês. Deve cumprir. Sempre temos de materializar o que prometemos.


– Por que está falando assim tão friamente? O que passa em sua cabeça?


– Vamos, iremos nos atrasar!


NO PARQUE


– Psicopata infantil? O que é isso mamãe? Acho que nunca ouvi essa palavra.


– Assassinos de crianças. Ele confessou, depois de preso, que cortou o corpo em vinte sete pedaços e a jogou em um dos lagos do parque. A defesa dele conseguiu provar a insanidade dele. Esse criminoso nunca foi preso.


– Mamãe, não existe um local mais apropriado para internar alguém que sofra de uma dor tão forte como a dela?


NO HOSPÍCIO


– Espero que esteja arrependido por falar tão mal daquele homem.


– Mas ele era um criminoso. Por alguma razão que desconheço, o que ela fez foi apenas dar-lhe do seu próprio veneno. A justiça foi feita.


– Acha haver justiça retalhar alguém em vinte e sete partes?


– Não.


– Por que está rindo? Um dia desses, disse que você não era médico. Agora digo que também não é juiz. Você é apenas um técnico em enfermagem. Ainda não percebeu isso, Inácio?


Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA      f-r-p@bol.com.br


 


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