Categories: Crônicas de um Francisco

Aos sonhos o que as mãos e os olhos não podem ter

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Roberto Vaz

– Quem é?


– Sou eu mamãe, viemos visitá-la! Faz tempo que não fazíamos isso!


– Ah! Sim, filha. Por favor, entre! Como você está?


– Estamos bem, mamãe. Tivemos um dia muito prazeroso… olhe, trouxemos esses doces para a senhora. Compramos quando descíamos do metrô e avistamos uma criança chorando pelo fracasso em suas vendas. “Os dias não estão fáceis”… foram as palavras delas.


– Melissa, onde você esteve hoje?


– Ah, mamãe! Depois de conversarmos ontem à noite, Cleber e eu decidimos fazer algumas mudanças em nossa relação.


Com o tempo, qualquer casamento se desgasta. A coincidência das atitudes, o fazer de novo o novamente, é chamada de rotina, e leva as pessoas à perigosa previsibilidade. É preciso romper essas barreiras. É necessário ter a certeza de que a prática do amor é a única coisa que, repetida, faz bem.


– Filha, você não quer comer algo?


– Não, mamãe. Estou farta.


– Mas você parece cansada! Seus olhos dão prova de que você viveu muitas coisas hoje. Sua tez é como a do mirador que persegue os rumos remotos de um grande deserto. Parece-me estafada.


– E como mamãe! Pela manhã, Cleber e eu fomos ao parque central. Parece que havia uma feira de livros lá. Mas não decidimos ficar muito, havia muita gente, e nosso plano era guardar esse tempo só para nós.


À tarde, após o almoço, resolvemos rever alguns amigos, publicar que éramos um casal feliz e que sabíamos que a felicidade era e devia ser sempre uma descoberta diária.


– Você passou pela casa de Lucas? Sabe que não gosto quando vai lá. Você não precisa lembrar mais dessas coisas, filha. Tente esquecer o passado! Faça um esforço! Lembre-se de que as borboletas não voltam para rever seus casulos.


– Não se preocupe, mamãe! Não demorei na casa dele. Bem sei que Cleber fica constrangido, quando vamos lá. Mas acredito que meu marido sabe diferenciar as coisas. É um homem maduro. Sabe que não podemos renunciar o que fizemos no passado, mas que somos capazes de, não o repetindo, dá-lhe a insignificância devida.


 O passado é como o ar, não há como renunciá-lo, sem renunciar a vida. Mas eu sei que há mais de uma saída. Não quero me condenar eternamente por algo que não tive culpa. Se Cleber não é senhor do que vivi, gostaria muito que ele continuasse dono do meu presente e arquiteto do que ainda viverei.


– Filha, escute! Não quero que retorne mais àquele local. Esse homem lhe fez muito mal. É um ser que tentou destruir sua vida. Rasgou os seus sonhos, corroeu o belo futuro que todos nós preparamos para você.


Os pais são culpados pelos fracassos dos filhos, mas não recebem o justo valor quando conseguem contribuir de alguma forma com a felicidades deles. Um filho destruído é a uma dor a mais, igual ou suficiente a sua própria perda.


– Mamãe, por favor, não se perca em pormenores! Eu já lhe disse! Não se preocupe! Na verdade só fui lá, porque queria rever aquele belo jardim. Nuca fui a um local com flores tão lindas. Eu até tive coragem de tirar uma. Está aqui no meu bolso, mas acho que os abraços e o contato com Cleber, nesse adorável dia, a desmanchou.


Mas isso não tem problemas, pois se nos apegarmos apenas ao que é sólido, corremos o risco de nos despedirmos de um dom de Deus: a memória.


– Filha, você precisa justamente romper com elas. Deve olhar para frente! Seguir e, se for o caso, abdicar até mesmo das âncoras desse triste navio.


Será melhor você ficar comigo aqui algum tempo. Vou preparar seu quarto e mais tarde, irei pegar suas coisas.


– O que você acha, Cleber? Não mamãe, ele também não acha bom fazermos isso. Poderemos incomodar. Tirar de alguma forma a sua privacidade. Obrigada, mamãe. A senhora tem sido muito pra mim. Meu coração é quente e minha alma, um brilho de lua em noite escura.


 Vamos amor, ainda temos de comprar algumas frutas para o jantar.


– Filha espere… eu…


– Tchau mamãe! Voltaremos breve.


– Pois não!


– É o doutor Júlio?


– Sim, sim, quem fala? Dona Erundina? Como a senhora está? Melissa está bem?


– É sim. É sobre ela que pretendo tratar com o senhor. Ela está pior, acabou de sair daqui. Está falante e nervosa. Contou-me que passou na casa daquele maldito.


– O que? Ele já saiu da prisão? Aquele estuprador assassino… como pode? Que justiça é essa, meu Deus? Ela ainda chora o assassinato de Cleber?


– Doutor, a casa do famigerado está vazia. Ele permanece detido. Espero que por muito tempo ainda. Mas no jardim onde, tudo ocorreu, ficaram coisas na memória dela que a destrói e joga fora todos os nossos esforços de recuperação.


Não sei mais o que fazer. ela conjuga os verbos sempre no plural e acredita na existência de Cleber apenas com uma fotografia na mão.


Por FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA     f-r-p@bol.com.br


 


 


 


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