Categories: Crônicas de um Francisco

A maior dor do mundo

Por
Roberto Vaz

Era preciso sacrificar aquele tigre. A companhia não poderia se dar ao luxo de arcar com as despesas de um animal que acabara de nascer e ter as duas pernas esmagadas por descuido de uma mãe incauta, desatenciosa e relaxada.


O circo não aceitava seres inválidos, o show ocorria graças à saúde de aninais fortes, pujantes e que pudessem encantar a plateia com suas travessuras, inteligência, porte e ferocidade. Era preciso abandonar o felino que se quer conseguia pôr-se de pé para aparar a carne jogada na jaula. Ele não teria chances na selva dos negócios de diversões.


Após a alimentação da manha, o acrobata fora o designado para por fim àquela vida desnecessária ao circo. Como só trabalhava à noite, era ele que teria de executar essa cruel missão.


Erguido o afiado e brilhoso punhal, nas redondezas onde se instalava o acampamento dos artistas, na hora de se despedir do recém-nascido, o acrobata teve sentimentos fortes de carinho e ternura por aquele felino que nem bem conseguia abrir os olhos.


Os lamentos de uma dor insuportável de duas pernas quebradas levaram o artista a se compadecer da pobre fera. Ele não tinha culpa, nascera para reinar no circo. Fora sua mãe a culpada de tudo. Um pouco mais de atenção e essa hora estaria amamentando e recebendo cheiros e afagos de uma língua grossa que lhe enxugaria o macio pelo.


O acrobata não o matou. Pegou o bichano, o colocou sobre seus braços e o levou para sua tenda, a fim de dar-lhe o tratamento devido. Todos do circo foram unânimes: não se criaria, não teria condições de manter-se vivo daquela forma. Alheio aos conselhos dos amigos de trabalho, o novo pai dirigiu-se ao dono da companhia e solicitou que lhe dessem a fera mal nascida.


Depois de uma curta e prática conversa, fizeram um excelente acordo que muito agradou o artista. O dono do circo iria vendê-lo e a comida do acrobata serviria para os dois, uma vez que o movimento não estava forte.  Reunidas as poucas economias, o felino agora tinha um dono que lhe daria se possível a vida para que ele não perecesse nesse mundo difícil.


Aceito o negócio, o acrobata passou a viver apenas para a fera. Muitas vezes passou fome, sentiu necessidade e, quando o animal crescia forte e feliz, o artista teve de buscar trabalho dobrado, pois a ração diária, que teoricamente seria compartilhada entre os dois, não dava mais nem para o tigre.


Passou a trabalhar intensamente. Durante o dia era serviçal, fazia comida, limpava o espaço, banhava os animais, contava dinheiro, fazia anúncio na cidade e tudo o mais que precisasse. À noite fazia o que mais sabia: arrojadas coreografias, davam ao espetáculo todos os aplausos possíveis. Era o número mais esperado, devido ao êxtase dos espectadores, todos queriam ver sua desenvoltura reiteradas vezes, tendo de abandonar o palco apenas quando a noite se enfraquecia, dando provas de que o dia estava nascendo.


Assim foi por três  anos, como o tigre que crescia não precisava se expor ao público, suas pernas deformadas não eram problemas para ele. Todos os dias tinha comida, banho e carinho que, com o tempo, se transformou em um verdadeiro amor. Era um sentimento puro de um artista que viu naquele felino debilitado razões para suportar tudo o que passara.


Certo dia, o artista, na hora de alimentar sua cria, recebera uma carta que iria mudar sua vida. Seu tio havia morrido e como ele era o único parente vivo, receberia todos os bens do parente que, diga-se de passagem, não eram poucos.


A felicidade tomou conta de sua alma. Aquele sofrimento iria acabar. As coisas iriam mudar, o mundo seria melhor para ele e para o animal que tanto amor tinha dispensado.


Com o vaso que continha os alimento do tigre nas mãos, passou a imaginar que dias felizes teriam. Não precisava mais trabalhar tanto, passar fome, ser alvo de gracejos, dormir pouco e fingir muitas vezes que não estava doente apenas para que a comida do animal não fosse comprometida.


Tanta foi a sua alegria que se esqueceu da realidade ao seu redor. Alguém tinha deixado acidentalmente a jaula aberta. O tigre que ele tinha criado desde tenra idade, apesar da difícil locomoção, trouxe, com uma das suas fortes patas, o acrobata para sua boca.


Restou apenas um pouco de roupa e o balde trazido. Deitado satisfeito no interior de sua cela, o tigre dormiu feliz. Só fora acordado quando, depois de saberem do acontecido, se preparavam para matá-lo. Um tiro certeiro dava fim a uma vida que pelos que viviam naquele circo não deveria ter continuado. Fora a teimosia do acrobata a grande culpada. Todos sabiam que ele era inválido, não servia para os propósitos do espetáculo e dos negócios.


Essa história aconteceu em um local que ficou conhecido como “A Cidade de Omi”. Contado pelo encantador de serpentes, foi passado para as futuras gerações o fato de que, antes de fenecer, o tigre olhava desesperadamente para os lados, como que perguntando: onde está meu dono para me proteger?


Seus instintos herdados não foram capazes de fazê-lo ver que ele estava perto, bem perto, unidos em um mesmo corpo. Sua falta de senso e irracionalidade não o deixou ver os novos tempos que despontavam.


Por não haver mais acrobata, a dúvida agora era saber quem jogaria o cadáver do tigre ao rio. O amor tinha acabado.


Essas letras eu as escrevo logo. Antes que a minha dor não me permita prosseguir. Nunca me foi fácil adestrar serpentes.


FRANCISCO RODRIGUES PEDROSA     f-r-p@bol.com.br


 


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Roberto Vaz

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