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Leia artigo da Juíza Regina Longuini no Consultor Jurídico: Legislação Penal atende aos patrocinadores do crime

O direito penal brasileiro, ao longo do tempo, tem se modificado para incorporar em seus estatutos preceitos diminutivos do poder sancionador do Estado que acabam por privilegiar a criminalidade, à vista de sanções que não traduzem o grau de violação social da conduta praticada. É o caso dos critérios hoje vigentes para a progressão do regime prisional que, ao garantir o retorno do preso à sociedade após o cumprimento, via de regra, de um sexto da pena, a pretexto de possibilitar a ressocialização, se traduzem em fator de impunidade e insegurança social.


De fato, mesmo aos autores de delitos havidos por inaceitáveis, como são os crimes hediondos, e tomando-se por exemplo a reincidência neste tipo de delito, é garantida a progressão para o regime semiaberto após o cumprimento de pouco mais da metade da pena. O retorno ao convívio social de forma tão rápida a quem praticou crimes de máxima reprovabilidade social gera e faz circular um sentimento de insegurança geral, de impunidade, de indignação, de retorno atávico à incivilidade.


Em entrevista publicada nas páginas amarelas da revista Veja, a ministra aposentada do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie Northfleet[1], avaliando o papel do Judiciário no cumprimento das leis e na manutenção das liberdades e direitos constitucionais, quando questionada sobre sua austeridade no tratamento das questões penais, afirma que: “No Brasil, depois da redemocratização, passamos por um período de rechaço absoluto a tudo que significasse repressão. Mas qualquer país democrático precisa ter repressão ao crime. É preciso que haja consequência para o delito, que o direito penal seja efetivo. No entanto, quando for aplicada a pena, é necessário que o sistema prisional cumpra sua finalidade de ressocialização. As penas não existem apenas para punir. Elas devem preparar a pessoa para que saia em condições de ser reabsorvida pela sociedade. E isso não acontece até hoje.”


Em verdade, as correntes defensoras de benesses máximas para os cidadãos, que se encontram em regime de cumprimento de pena privativa de liberdade, visando à descarcerização o quanto antes, atendem, muitas vezes, aos apelos financeiros do Estado, que deve prover e dotar o aparelho executivo de meios suficientes para garantir minimamente a efetivação dos direitos constitucionais nos estabelecimentos prisionais. Escorados em movimentos garantistas, que primam pelo amplo acesso aos meios de defesa e pelo respeito às prerrogativas do contraditório, os defensores de pensamentos afeitos ao denominado “garantismo à brasileira” acabam por legitimar a impunidade por meio do abuso do direito de defesa[2].


Ressalta o promotor de justiça Gláucio Ney Shiroma Oshiro que o movimento garantista é fundamental em um Estado Democrático de Direito, mas sua compreensão deve ser sistêmica e integral. O “garantismo à brasileira” representa o garantismo hiperbólico monocular, na feliz expressão de Douglas Fischer[3], à medida que concede proteção desproporcional (hiperbólico) somente aos direitos fundamentais individuais dos cidadãos que se veem investigados, processados ou condenados (monocular).


Nesse ponto, a legislação hoje positivada, atende aos interesses dos grandes patrocinadores do crime, fazendo com que antes de cometerem um crime, já calculem quanto tempo passarão no cárcere, numa equação custo/benefício que totaliza, no final das contas, a aferição da máxima “o crime paga barato”. Assim, permanecendo inerte a legislação hoje vigente sobre a matéria, estarão os legisladores cegos aos apelos sociais por rigor na tutela estatal, de modo a garantir de forma efetiva o controle social.


A lei deve estar lastreada na tábua axiológica da proporcionalidade, sem desrespeitar, como é lógico, o princípio da individualização da pena. Fincados tais paradigmas, há que concretizar a função prática e concreta da pena e não um “faz de conta” como assistimos nos dias de hoje, a despeito do trabalho hercúleo da Polícia Judiciária, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Quanto maior a reprovabilidade social de determinado comportamento, maior deverá ser a pena cominada em razão do desrespeito. Ou pelo menos, que parte razoável dela seja realmente cumprida. Sobremais, aponte-se a necessidade de timbrar as penas com a marca de credibilidade em prol dos direitos humanos da sociedade. Este preceito tem por corolário a ação efetiva do Estado, de modo a punir eficazmente a prática de crimes, notadamente aqueles praticados com violência e contra a vida. E verdadeiramente cumpridas as decisões judiciais.


A imposição de uma penalidade grave a determinado criminoso não será suficiente para produzir as consequências sociais que dela decorrem se sua aplicação não se der de forma eficaz. Assim, de nada adianta impor a um condenado pelo crime de homicídio simples a pena de dezoito anos de reclusão, se existe a possibilidade de ele vir a transitar livremente ao lado dos parentes de sua vítima após o cumprimento de três anos desta pena em regime fechado (segundo interpretação sistemática do artigo 112, da Lei 7210, de 11.07.84, com o artigo 121, caput, do Código Penal).


O exemplo dado nos mostra a fragilidade encontrada hoje no nosso sistema penal. A sensação de impunidade reina em face da situação verificada no estado brasileiro, em que a lei não é capaz de incutir no indivíduo propenso ao crime o dever de obediência às regras de direito penal, nem concede ao cidadão cumpridor de suas obrigações a segurança capaz de tranquilizá-lo no convívio em sociedade.


Esse contexto se agrava à percepção de que o sistema republicano é duplamente culpado por essa ignomínia legal que anima a impunidade. Com efeito, atuando ainda ineficazmente nas causas da criminalidade, que perpassam por vários fatores, entrelaçados no binômio social desigualdade/investimento, deveria ao menos preocupar-se em agir de forma contundente na repressão ao crime, implementando e aplicando normas com real teor punitivo, também como forma de pacificar a sociedade. Também carentes são os recursos necessários para fazer cumprir a legislação penal, contribuindo diretamente para o desrespeito às garantias constitucionais dos reeducandos, relacionadas com a dignidade humana. Empenha-se em albergar soluções supostamente garantistas que permitem um retorno mais célere do preso à sociedade, despejando todos os dias no meio social centenas de detentos que não foram ressocializados.


Nesse contexto, a alteração das regras de progressão do regime prisional, agravando-se os critérios para sua concessão, constitui medida urgente e necessária para assegurar o respeito à legislação penal, reduzindo a impunidade e a insegurança social, e devolvendo ao Estado sua parcela de responsabilidade e poder na tutela efetiva dos direitos do cidadão. É a expressão concreta do garantismo penal em sua compreensão integral, ou seja, preocupado também com os direitos fundamentais coletivos, e não somente com os direitos de liberdade individual, bem como fazendo frente às esferas privadas, e não apenas em face dos poderes públicos. Com a palavra, os legisladores com a competência lídima de mudar o que a sociedade tanto espera: a credibilidade e a real e concreta efetividade da execução das penas aplicadas pelo Poder Judiciário. Um bom momento em tempos de reforma do Código Penal.


Por Regina Célia Ferrari Longuini



[1] NORTHFLEET, E. G. “É o poder menos corrupto”: entrevista. [31 de agosto, 2011]. Brasília. Revista Veja. Entrevista concedida a Carlos Graieb e Paulo Celso Pereira.


[2]“Ser garantista não tem nada a ver com permitir a um homem condenado em duas instâncias permanecer indefinidamente em liberdade. Isso não é assim em país civilizado algum do mundo.” LENART, André. Garantismo x defesa da impunidade. Disponível em: . Acesso em: 13 mai. 2012.


[3] FISCHER, Douglas, Garantismo penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 28, mar. 2009. Disponível em: Acesso em: 27 mar. 2010.



Regina Célia Ferrari Longuini é juíza de Direito do estado do Acre, titular da 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Rio Branco.


Revista Consultor Jurídico, 18 de julho de 2012


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