Categories: Crônicas de um Francisco

A Fábrica de Santos

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Roberto Vaz

Madeira bem trabalhada, aros de metal sobre as laterais semelhantes a ouro e um tecido, que cobria uma bela mesa, davam um toque de luxo àquele velório, um toque de fineza àquele caixão. Cadeiras ao redor, bancos, choros, lamentações, lenços e bebidas quentes, ninguém queria acreditar no que tinha acontecido. Pelo ambiente montado naquela reunião, diria que morrer só é realmente triste para quem continua vivo.


Dorival não era mais. Após três cirurgias para conter o avanço de um câncer, diabético, hipertenso e com pneumonia, seu corpo desistiu de lutar e encerrou-se em sua própria consequência biológica. Morreu.


Todos ali amargavam a perda. As conversas baixas se dirigiam sempre para os mesmos caminhos. “Era um homem tão bom!” “Como é o destino! Ontem mesmo eu conversava com ele e ele me dizia que iria a minha casa fazer uma visita, assim que ficasse bom.” “Aprendi muita coisa com ele! Sempre nos mostrava os melhores caminhos a seguir.” “Dorival, meu grande amigo, que Deus tenha reservado um lugar melhor para você.”.


O velório é a melhor fábrica para fazer santos.


Antes, na vida real, Dorival era um crápula. Empresário de má índole, no passado assassinou o próprio sócio para que pudesse tomar conta de todo o negócio sozinho. Os clientes não eram perdoados nunca. Contas falsificadas, produto adulterado e de má qualidade tinham ajudado o impostor a fazer fortuna. No trato profissional, uma víbora! Era comum os empregados sofrerem com seus destemperos, gritos, assédios, baixos salários e com os atrasos constantes. Passava de mês sem pagar seus prepostos.


Em casa era um monstro! Batia na mulher, humilhava-a sempre que podia e sempre quando não podia. Tirando aquela foto na parede em que a família ria para a vida, os únicos presentes que deu a ela foram marcas no corpo pela violência costumeiramente empregada e várias doenças venéreas contraídas em suas libertinagens que nem fazia questão de esconder.


Por não aceitar a realidade diferente dos dois filhos mais velhos, exigiu que o deixassem. Sem nenhuma caridade, expulsou- os, dizendo que deveriam tomar conta da própria existência. Não se importava que essas vidas nem bem chegavam aos dezoitos. Só a filha caçula ficou. Tinha ainda um ano para pensar o que iria fazer, quando atingisse a maior idade.


Depois da separação, casou-se com uma dessas menininhas de interior que aceitam qualquer porcaria de homem, desde que lhe garantam ao menos a comida diária. Pelo pouco que a idade lhe dava, desapegada de sentimentos mais complexos, aproximou-se da filha de seu marido. A intrusa fora bem vinda, pessoa certa para uma pessoa que crescia sozinha.


Tornaram-se amigas, boas amigas. Os segredos mútuos eram compartilhados e, sempre que preciso, uma ajudava a outra a se livrar da ira de Dorival. No andado dessa amizade verdadeira, as duas eram agora apenas uma.


Tudo faziam juntas. Tudo! Brincavam, compravam coisas para casa, pagavam as contas do mês, escolhiam alguns móveis novos e até mesmo iam ao hospício visitar a mulher que Dorival mais prejudicou.


O longo período de doença, internações, cirurgias e tratamentos tinham unido ainda mais as duas mocinhas. A filha ouvia da madrasta irmã que mesmo antes dos problemas de saúde, Dorival não atendia mais aos reclames de suas vontades mais quentes. A madrasta ouvia da filha companheira todos os males que ele cometeu com seus irmãos e com sua mãe.


Dona Lúcia morreu antes de Dorival. A filha não sentiu tanto a perda. O hospício era mais dolorido. Ver a mãe desvairada gritando, presenciar a renúncia de uma mente insana que não reconhecia nem mesmo a filha, assistir o desprezo dela por trajes e roupas, o ambiente fúnebre do manicômio, tudo isso era muito forte para um corpo ainda adolescente.


Apesar do reencontro com os irmãos no velório, Ana sentia que a madrasta era a sua verdadeira companhia. Foi ela que lhe deu todo o suporte, apoio e ajuda nos últimos momentos que passou com a mãe.


Quando o automóvel da funerária chegou para levar o corpo do pai, Ana e a madrasta estavam alegres.  Depois que pagassem o enfermeiro que reforçou o soro glicosado dado ao pai dela no hospital, poderiam viver o que ensaiavam nas longas noites sozinhas. Poderiam ser o que nem o pai nem sua mãe foram: felizes.


FRANCISCO RODRIGUES      f-r-p@bol.com.br


 


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