Categories: Crônicas de um Francisco

Dicionário da virtude

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Roberto Vaz

Tínhamos combinados de sair cedo. A rodovia que liga Santa Cruz de La Sierra ao nosso destino é cansativa, perigosa, mal cuidada e desconfortável. Minha irmã e eu pegamos a estrada antes do sol mostrar seu riso. Imaginávamos que assim, poderíamos, se tivéssemos sorte, almoçar em Cochabamba antes das duas da tarde.


Saindo da rodoviária, admirados com aquela babel de mercadorias expostas aos gritos e berros por pessoas que falavam um espanhol “sujo”, pouco a pouco, dentro de um ônibus feio e sem luxo, fomos vendo o dia desenhar as regiões desse país fenomenal. A paisagem da Bolívia me parecia com as fotos de Marte, tiradas pelo robô Sojourner em 1997.


Paramos em um povoado que faria Francisco Pizarro se assustar com a pobreza. Meninos descalços, empoeirados e com a pele riscada pelo vento forte e seco que cortava aquela região nos ofereciam refrigerantes quentes e salgados temperados com moscas.


Alguns metros adiante, um mendigo lia um pequeno livro de contos sobre as lendas de Benin, um modesto departamento no centro da Bolívia. Aproximei-me dele e iniciei um diálogo que nunca compreendi seus efeitos.


– Bom dia! O senhor mora aqui nesse povoado?


– Que diferença faz morar aqui, em Paris ou debaixo das pontes de São Paulo?


– Costuma sempre ser assim cortês com quem lhe dirige a palavra?


– Que diferença faz ser amável ou rude em um mundo frio e desigual?


– Acha que quem lhe dirige o verbo é o culpado por seus complexos e traumas?


– Que diferença faz achar culpados ou inocentes. Nós temos punições dignas?


– Então acredita que devem tratá-lo da maneira que trata quem se aproxima de você?


– Que diferença faz ser a caça, o caçador ou o rifle?


– Por que o senhor acha que virou mendigo? Não imagina que essa sua manifestação antissocial pode ter ajudado?


– Que diferença faz escolher a causa ou a consequência? Você não acha que antissocial é quem permite a existência de miseráveis no mundo? Meu país e o seu produzem milhares de desafortunados. Acha que resolveremos esse mal?


Tem uma moeda? Far-me-ia um convite para comer alguma coisa? Ajudaria a encerrar esses dois dias de sono em que se encontram meus dentes?


– Servem essas moedas? Acha que conseguem comprar algo?


– Que diferença faz? Acha que busco comida francesa?


– Por que não me responde uma pergunta? Ataca por estilo ou por realmente duvidar?


– Seu ônibus está saindo. Não pode perdê-lo. Sua irmã procura por você. Isso faz diferença.


O mendigo estava certo. Ele sabia o que falava. Em Cochabamba, se não fosse ela, passaria todos os cinco dias sem poder comprar nada e sem poder voltar para Santa Cruz. Ele tinha furtado todo o meu dinheiro.


Mas isso não fez diferença, pois sempre tive dificuldade de ver as pessoas longe de suas ações e de suas realizações forjadas. Sem dimensionar papeis, naquele diálogo tosco, um dos dois era a presa, um dos dois era o caçador.


Eu consegui voltar para Santa Cruz. Já ele, morreu de frio, tendo alucinações que o meu dinheiro possibilitou comprar. Nos dias em que meus traumas mais me assombram, nas noites sozinhas que guardo em meus olhos, prendendo a voz e me encolhendo em dores profundas eu sempre me lembro da pergunta dele: que diferença isso faz?


Antes de eliminar meus males, preciso deixar de fabricar fantasmas, pois na lama, ninguém condena os porcos.


FRANCISCO RODRIGUES     –        f-r-p@bol.com.br


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