Categories: Crônicas de um Francisco

Cartas a minha grande amiga

Por
Roberto Vaz

– Para onde estamos indo?


– Para o Sul. Lá teremos águas mais quentes e condições mais apropriadas para podermos continuar vivos.


– Mas por que temos de fazer isso? Não podemos ficar?


– Não, não podemos. O inverno aqui é rigoroso. Você é muito novo, agora que conseguiu reunir condições para fazer essa migração. Não pode imaginar como é inóspito o Polo Norte nos longos meses de inverno. Aqueça-se! Logo partiremos.


– E se eu pretender ficar, desafiar o clima, a escuridão ártica? Se eu não seguir o bando? Não posso abrir mão? Não tenho direito de seguir um caminho diferente?


– Veja jovem pássaro. Essa rota rumo às ilhas do pacífico sul é percorrida por nossa espécie há milhares de anos. Nossa memória genética nos guia e nos garante longes de qualquer erro. Para continuarmos sendo, temos de cumprir nossos destinos. É preciso seguir as ordens naturais. Se você se afastar de nossa tradição, correrás perigo. Sério perigo, pois não sabemos dizer o que irás encontrar no intenso frio que se aproxima.


– Pois pretendo ficar. Serei o primeiro a mudar essa história. Pelo direito de ter opiniões, de ser livre para escolher meu futuro, pagarei o preço. Quero minha identidade evidente.


– Sorte para você. Os ventos já nos indicam e nos advertem. Precisamos partir. É chegada a hora. Nossos filhos cresceram rápido e já dispõe de condições para a grande jornada. Se você quer ficar, espero que tudo corra bem. Sempre tive curiosidade de saber o que ocorre aqui nesses seis meses de frio. Se tudo der certo, nos falaremos nas próximas estações. Adeus! Não lhe condeno. Adeus!


A jovem ave assistiu aos seus pares alçando vôos e se distanciando no horizonte palidamente azul. Progressivamente o vento dava sinais de que o tempo mudaria breve. Um outro cenário estava prestes a se formar.


Sozinha, assistindo a escassez de alimentos cada vez maior, a pobre ave começava a ter dificuldades para enxergar a paisagem adiante. Voar era arriscado, pois as correntes de ar frio confundiam suas asas em uma direção firme. Sem disfarce, nem outras dissimulações, a ave teve medo. A todo tempo era bombardeada por pensamentos que lhe convidavam ao arrependimento.


Três semanas depois, com frio, sentindo fome, desesperada pela solidão da neve, o pássaro encostou-se sobre um grande rochedo e chorou. Aquele pranto perturbou uma pequena lagarta que já tinha iniciado seu processo de hibernação.


– Por favor, não chore. Posso ajudar em alguma coisa? Perguntou a lagarta fazendo-se visível para a ave.


– Oh! Meu Deus! Como é bom ter alguém! Sinto fome, mas a solidão é dor maior para suportar. Que bom encontrar alguém. Também decidiu romper com as tradições? Também decidiu ter escolhas próprias? Ah meu deus! Como é bom ter alguém! Bradou a ave, feliz pelo inusitado encontro.


– Todos os invernos, ficamos aqui. Faz parte de nossa biologia. A hibernação foi uma saída para o êxito de nossa espécie. Apenas seguimos o que nos foi previamente determinado. A rebeldia seria partir. Mas isso nenhuma de nós fez.


Contrariada com o que ouvia, a ave deixa o local triste e ofendida. Os meses seguintes seriam cruéis para ela. O Polo Norte mostrou sua força, os ventos secos e cortantes, misturados com sons incompreensíveis deram advertências de que não poupariam os cônscios.


No verão do ano seguinte, ao voltar para lá, os parentes da ave, que teve opinião própria, a viram morta, coberta com uma fraca camada de neve que se dissolvia lentamente.


Apesar de ter devorado todas as lagartas que encontrou, o inverno foi superior a sua resistência de viver. O animal de sangue quente agora era um cadáver que logo seria achado pelas feras de rapinas que despertavam famintas do duradouro inverno que acabava.


Sua família lamentou profundamente a perda. Não pela vida que se tinha ido, mas por não ter uma testemunha do que ocorria ali naquele período. Por mais que reprovassem a decisão da ave rebelde, todos tinham curiosidade de saber disso. Era um preço que precisavam pagar.


Não sei bem, minha grande amiga Isa, se eles estavam dispostos a tal.


FRANCISCO RODRIGUES    –      f-r-p@bol.com.br


 


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Roberto Vaz

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