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Amigos, amigos, verdades à parte

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Além de jogar no esquecimento os antigos mercados livres do centro da cidade, aonde as pessoas iam, geralmente aos fins de semana com aquelas sacolas resistentes, que os meninos usavam para coar vidro, ingrediente indispensável ao cerol do “bate trisca”, as redes de supermercados trouxeram comportamentos novos para os consumidores.


O barulho, os gracejos, o tumulto, as longas conversas informais com os donos das barraquinhas foram trocados por relacionamentos mais frios, adequados ao novo perfil de cliente que se buscava.

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Senhor, em que posso servir? Deseja alguma coisa mais? Tenha um bom dia. Obrigado por ter vindo, aproveite nossas ofertas e desejamos que faça boas compras. Esses e outros são alguns exemplos dessas mudanças.


Nunca o vendedor da barraquinha iria dizer uns palavrões desses. Se conhecesse o freguês, daria um desconto no preço dos produtos, perguntaria como estavam de saúde, ou para agradar, colocaria uns itens a mais na sacola, junto com o convite para que visitasse sua casa. Se não conhecesse, resumir-se-ia a dizer: tem, não tem, vê ali na outra barraca.


Ainda me recordo, quando morávamos no bairro Preventório, era pontual minha mãe levar todos os filhos para a missa do domingo e, após o festim religioso, irmos pesquisar os melhores preços das verduras que trazíamos em toucas de plástico amarelas, modelo teia de aranha, que algumas mulheres usavam até mesmo na cabeça para conter os cabelos.


Como era para acontecer, voltávamos do mercado velho a pé, cortando pelo Papôco, sem qualquer preocupação com o sol quente, distância ou duração do percurso. O que nos incomodava mesmo era os enganches que minha mãe realizava. Cada conhecido encontrado na rua era motivo para uma parada, uma longa conversa que durava mil anos. Isso sim irritava os filhos.


Os supermercados deram aos consumidores acrianos um novo espaço social. A maioria deles, organizados, definidos e determinados, zelam por uniformidade no trato, qualidade nos produtos e preocupação em bem servir. Não importa se quem está comprando é seu único filho, e que fazia trinta anos que você não o via. Nesses centros comerciais todos são tratados como senhor ou senhora.


Devido a agradável surpresa, certo dia, num desses a que me refiro, Elder estava fazendo suas compras, quando avistou um grande amigo que há mais de 20 anos não via. Rompendo a conduta exigida, Douglas e Elder se abraçaram, riram juntos, nem percebendo que falavam muito alto para os padrões do local. Venciam o locutor que anunciava as próximas ofertas.


Após quase dez minutos de boa conversa, Elder deu o número do seu celular, disse onde estava morando e pediu encarecidamente que o amigo fosse vê-lo. Emocionados com o reencontro, deram mais um abraço apertado, reafirmaram a alegria e pediram a Deus que cuidasse deles. Em seguida, iniciaram, felizes, as compras.


Movimentando-se pelas seções, quatro minutos depois, os dois amigos se encontraram de novo. Dessa vez, contaram o que tinha faltado, disseram em que trabalhavam e quantos filhos criavam. Falaram mal dos amigos que não estudaram na vida e um deles lembrou, com pesar, que um havia morrido de câncer. Continuaram, então, novamente, as compras.


Cinco minutos depois, estavam os dois juntos na seção de frios. Riram um para o outro e vasculharam o que ainda faltava ser dito. Tapinha no ombro e retomaram o doce sabor de comprar.


Quando Elder estava escolhendo um bom vinho, três minutos mais tarde, advinha quem ele encontrou? Sim, Douglas também era afeto às paixões etílicas e, sempre que podia, não se esquecia de um bom vinho do Rio Grande do Sul. Olharam-se. Levantaram as sobrancelhas e confirmaram com um piscar de olhos o encontro que duvidavam que já tivesse acontecido outras vezes.

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Momentos depois, Douglas, ao perguntar a um funcionário onde poderia encontrar veneno para matar pestes domésticas, ouvia de um senhor atrás dele que esse produto ficava perto da seção de limpeza. Era Elder que também procurava algo para o filho mais novo. Dessa vez não se olharam, apenas um obrigado foi ouvido. Continuaram, então, as compras.


Seguia Elder pelo supermercado, quando mais uma vez avistou o amigo na outra extremidade e, para não cruzar com ele de novo, dobrou a esquerda e entrou numa seção que nunca visitou. Elder odiava as prateleiras de artigos para festa. Mas ali ficou até o amigo passar e seguir outro rumo.


Essa foi a prática a partir dali. Sempre tentando se desviar um do outro, pois não aguentavam mais ver aquela pessoa irritante e desagradável. Arrependeram-se profundamente de terem feito uma belíssima despedida logo no início da feira. Agora tinham que se tolerar.


No caixa, estavam na mesma fila. Não se falaram, não se olharam e quando saíram, sentiram-se aliviados, esperando que nunca mais pudessem ver a figura um do outro.


Em casa, Elder pensou: vou ter que mudar o número do meu celular, vai que aquele narigudo me liga, querendo vir aqui. Deus me livre. Aquele “mala sem alça”!


Douglas, ao abrir o portão da residência, disse para a mulher que o esperava: você não sabe quem eu vi na feira. O Elder. Lembra aquele bagunceiro que nunca quis nada com a vida na escola? Você precisa ver a cara dele. Parece que tem mais de cem anos.


FRANCISCO RODRIGUES   –    f-r-p@bol.com.br


 


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