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Mendigos das sombras

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Era o primeiro dia de aula. Descia no Terminal e pegava o ônibus UFAC. Lotado, a condução lhe trouxe uma pequena aflição: aquele monte de gente poderiam não ver o nome do curso de História estampado na camisa, comprada na Maria Japonesa.


Estava ansioso. Numa mistura de alegria e nervosismo, olhava para a capa do caderno novo, ainda sem acreditar que tinha vencido a guerra contra o vestibular. Isso, depois de ter duas derrotas pesadas nessa feroz e desigual batalha: entrar em uma faculdade pública.

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Na primeira vez que prestou vestibular, sem qualquer dimensão das coisas, se escreveu para Direito. Inexperiente e bobo, não entendia os risos e as indiretas de quem ficava sabendo de sua coragem. Algo próximo a chegar a Marte usando velocipes .


Sua nota foi uma tragédia de dar inveja a Sófocles. Amargou por vários dias essa ferida. Não saia de sua cabeça aquelas pessoas de um famoso pré-vestibular, que tinham feito a prova em sua sala, com umas blusas com frases agressivas e temerárias: “O MUNDO É DOS MAIS FORTES”, “ESCONDA-SE NA SOMBRA, POIS O SOL SOU EU”.


Sebastião era filho de escola pública. O ensino fundamental tinha sido no Serafim Salgado e o Médio no então Lourenço Filho, onde hoje há a escola Heloisa Mourão Marques. A dizer sem exagero, cego chegou à escola, cego dela saiu.


No outro ano tentou algo mais próximo. Prestou exames para Educação Física. Passou na primeira faze em 76º. Para os que não entendiam a dinâmica de um vestibular, desmancharam-se em parabéns e bajulas que lhe deixavam sem jeito. Era ruim explicar que o drama continuava e que as vagas eram menores que sua classificação. Resultado revelado, também não tinha passado. Tinha reprovado na redação.


Dessa vez a dor não foi tanta. Os pais nem queriam mesmo esse curso. Alegavam que o mercado de trabalho para essa área é pequeno, que o parente, formado nesse curso, estava desempregado, que a roda não tem quina, que o céu é azul e que o dia tinha 24 horas. Apenas pediram ao filho mais atenção na hora de fazer um texto dissertativo.


Seguindo sua via-crúcis, no ano seguinte, se escreveu para História. Dessa vez, por experiência e sorte conseguiu aprovar. Experiência porque pode estudar um pouco mais durante o ano. Sorte porque não zerou a quadra mortal dos alunos: Matemática, Química, Física e Biologia.  Nessas matérias não havia se quer uma questão que tivesse segurança em responder. Saiu com a perna direita dolorida de tantos chutes.


O bairro todo soube da notícia. Era algo divino, repetido pelos familiares sempre que encontravam uma oportunidade. “Meu filho vai fazer faculdade!” Diziam na compra do pão, na fila do banco, na partida de futebol, na visita da conhecida, no velório do Seu Alencar. Sebastiao era o orgulho da casa.


Os pais imaginavam que formado, o filho pudesse fazer muitas coisas voltadas para sua área de formação: construir foguetes para a NASA, se candidatar a Juiz Federal, descobrir a cura da AIDS. Nada seria impossível frente ao talento do filho.


No ônibus, sentou-se a seu lado uma estudante que iria cursar Economia. Logo começaram a conversar, falar da vida, dos sonhos e dos planos para o futuro. A moça deu os parabéns a Sebastiao, disse que seu curso era interessante, importante e que depois desse que iniciava, pensava seriamente em fazer também História.


A conversa iria mais longe, Sebastião iria falar das dificuldades que teve, dos erros e dos acertos na prova e do que esperava do curso que começava. Porém, algo aconteceu! Na cadeira da frente estava sentado um rapaz que não fora logo reconhecido, devido à cabeça raspada para o novo curso.

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A moça tocou-lhe o ombro e perguntou:


– Você fez pré-vestibular comigo, não foi?


– Sim! Respondeu o rapaz sem demonstrar maiores espantos.


– Que curso você fará na UFAC? – indagou a estudante, dizendo que tinha passado para Economia.


– Passei para Direito. Fui o 10º.


– Nossa! Parabéns viu. Você está no caminho certo. Que carreira pensa em seguir? Vai advogar? Buscar a magistratura?


Essas e outras perguntas seriam feitas durante todo o percurso. Sempre ela perguntando, sempre ele respondendo indiferentemente, como se ao invés de ônibus, estivesse na primeira classe de uma companhia de aviação do porte da Airlines.


Sebastião calou-se. Não tinha mais direito de falar de si. Com a mão apoiando seu queixo, fingia uma reflexão profunda que justificasse aquele silêncio. Na saída, recebeu um tchau apenas porque a moça sentava na cadeira da janela e tinha de sair primeiro que ele.


Descendo no bloco “Vai Quem Quer”, juntamente com o aprendiz de jurista, o futuro historiador perguntou:


– Sabe onde fica a SOMBRA?


FRANCISCO RODRIGUES – f-r-p@bol.com.br


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