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O monstro do Lago Sobral

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A região da Sobral é um complexo populacional formidável. Contempla dezenas de bairros. Um laboratório de experiências sociais que apesar de intenso, pouco é notado pelos que navegam nessa área do conhecimento. Estudiosos dos fenômenos, esses potes de intelectualidades, quase sempre tiram suas argumentações, conclusões e lógicas de outros espaços brasileiros.

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Como se fosse um procedimento de informática, um “control C, control V” passam anos estudando outras realidades, a França de Carlos Magno, a Inglaterra de João sem Terra, Asgard no reinado de Odin, ou outro local qualquer e, depois, com ar de originalidade, fazem um enxerto teórico para as coisas que acontecem aqui. Ao menos fosse o objeto de analogia o Cortiço de Aluísio de Azevedo e teríamos coragem de dizer que conhecem o Acre desenhando as praias de Ipanema.


A sobral é um mundo! Índios recém-conhecedores da gripe, peruanos que dilaceram o português, bolivianos que não conhecem o desconto no comércio informal, gente de todos os municípios do interior, de outros locais do Brasil, classes de elevado nível de vida e pobres, meu Deus, muitos pobres.


Pobre com antena sky e Embratel.  Pobre de classe média com carro novo de 1200 parcelas. Pobres sem dentes para o nada que lhes acompanha: a lata de óleo e o vaso do sal na pernamanca da cozinha. Pobres que sabem viver com o pouco que a vida lhes dá. Pobres batalhadores, castigados pelo sol de cada dia, mas que mesmo assim se mostram felizes. Pobres.


A Sobral é movimento! Eternos andarilhos que sobem e descem a Bola Preta todos os dias. Se não fosse pelo caráter um tanto íngreme, diria que a Avenida Paulista, a 15 de Março ou o Braz, são cópias dessa procissão de gente diversa que se move nessa espetacular ladeira, unidos apenas pelo instrumento chinês de duas rodas. É formidável!


Historicamente a Sobral nunca recebeu o respeito devido. Os administradores olham para ela e sentem medo diante do universo de problemas que ela tem e da pouca competência que lhes é comum para resolvê-los.


Erguida em uma região de muitos córregos igarapés e pântanos, tendo o rio Acre à sua costa, a região sempre sofreu com a falta de infraestrutura, marcadamente mais sentida nos longos meses de inverno. Se fizermos uma indução básica, os políticos não deveriam ter tanto medo da Sobral. De lama conhecem muito. Mas muito mesmo!


Recentemente, a Rua Rio Grande do Sul foi contemplada com uma melhoria considerável em sua malha. Mas nada comparável com o tratamento de rei que outros pontos da cidade receberam. A Avenida Rocha Viana, Avenida Ceará, Via Chico Mendes e algumas outras não sabem fazer outra coisa que viver a escarniar da pobre Rio Grande do Sul com sua “mão única”, lenta, agoniante e de confiabilidade duvidosa.


Era meio dia! O ônibus que faz essa rota estava completamente lotado. Cruzava a Rua Rio de Janeiro e seguia pela tímida Minas Gerais. Dentro dele um mosaico humano de nossa capital. Um Brasil num veiculo de quatro rodas.


No banco da frente, senhores a maldizer o tanto que recebem do Governo Federal, indignados com a conspiração dos políticos em tirar-lhes o pouco de vida que ainda lhes resta.


As contas não seriam pagas, todas, esse mês. O empréstimo para filha fazer um quarto no fundo do quintal para a neta que se juntou com o pai da criança consumiu parte do vencimento. O remédio para fazer cócegas no colesterol e na pressão alta pegou outro tanto. Aquele retrato com toda a família reunida, ainda faltava a última prestação. O fiado no seu Juca já ia fazer aniversário. A velhice é mesmo um drama no Brasil.

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Na parte de trás, caixas, bacias e outros pertences de quem tinha terminado a venda na feira nos mercados do centro da cidade, se acomodavam, disputando espaço com pessoas que não faziam questão de esconder o incômodo que aquele monte de treco causava.


Os donos dos pertences nem ligavam para a melhor posição dos passageiros. Faziam as contas do apurado e tentavam ter cuidado com o que não foi vendido. Pensavam que se não demorasse muito, daria tempo de reaproveitar a sobra na venda do outro dia. Viva as verduras!


No meio do ônibus, a maioria era estudante voltando para casa. Felizes pelo fim da aula que nada disse para eles. Os assuntos, os risos e cochichos, não passavam pelas matérias explanadas nas escolas de onde tinham acabado de fugir. Sem notar o fone no ouvido, conversavam alto, incomodavam.


Havia até aqueles que, num gesto nobre e humanitário, imbuídos de um sentimento cristão extremo, compartilhavam o som que ouviam no celular com todos os que estavam no ônibus. Até os mais idosos passaram a ser informado de que o creu tinha cinco velocidades.


Não era um dia normal! O cobrador tinha problemas. Ainda pela manhã, na parada final, tinha feito um lanche com temperos diversos e provavelmente tinha exagerado na quantidade. Sua barriga trovejava! Suas vísceras davam voltas e se movimentavam como ondas do mar. Desconfiado, assustado e temeroso, o senhor sentia que algo lhe reclamava urgente saída, proibida, claro, ciclicamente em uma forte contenção muscular, seguida de dores agudas que lhe faziam franzir o rosto.


A cada volta do ônibus parecia que seu estômago iria voar fora. Segurava seu corpo com muito cuidado, elevava as nádegas e buscava fingir seu inconveniente mudando a posição de sentar na cadeira. Precisava urgentemente fazer algo, eliminar aquilo que lhe trazia incômodos. Mas como? Aquele ônibus lotado saberia, ou melhor, sentiria a prova de que ali algo cheirava mal.


Perto da antiga casa do senador Mário Maia, uma motocicleta, num total ato de irresponsabilidade, cruza um carro que seguia em sentido contrário e, se não fosse a perícia do motorista, um outro grave acidente teria acontecido.


Outro, porque a freada brusca levou os passageiros do ônibus lotado para frente. Todos se esbarraram entre si, causando uma enorme confusão. As vítimas nem imaginavam o que isso poderia acarretar. O cobrador que a duras penas mantinha solitário seu martírio, sendo sacudido para frente inusitadamente, não resistiu ao esforço e, socializou a sua obra. O barulho da freada escondeu o outro estrondo.


Ninguém teve tempo de maldizer o motoqueiro doido. O odor solto e exalado, captado pelas narinas das vítimas foi tão intenso que parecia que a rota seguida acabara de entrar no mais potente esgoto do planeta. Era uma mistura de ovo apodrecido com restos de bacon, feijão preto e queijo, deixados seis dias fora da geladeira. Um Bronx River ou um Newtown Creek de Nova York na década de 70.


Todas as mãos foram usadas! Até aqueles que a ocupavam, segurando-se nos suportes, deixaram a postura e mudaram para atitude mais urgente. Questão de vida ou morte, fechar o nariz. Palavrões, gargalhadas de alguns e muitas reclamações foram a nota desse triste concerto putrefato.


– “Deus me livre! – Dizia o coveiro – Isso é hora de querer ir ao banheiro! Isso não é ser humano! Pior que isso, pode rezar a missa do sétimo dia, porque já está podre, só se esqueceram de enterrar.”.


– “Para motorista! – Gargalhava o empacotador de materiais de construção – Pelo amor de Deus! Não sabia que urubu também fazia essa linha. Que é que é isso, porra! Desce todo mundo e vamos procurar esse bicho que acha que é gente!” Tem que matar de pau!


– “Minha nossa! – Reclamava a moça que voltava da universidade. – É muita falta de educação! Que país é esse! Um ônibus lotado desse, nesse sol quente, nessa conjuntura, alguém se dispõe a fazer isso! É um absurdo! É gostar de ser muito inconveniente mesmo. Se manque seu estragado. Agora não aparece quem foi o dono da flatulência! Quero ver se tem coragem de assumir essa ópera da excrecência.”.


Ela fazia História na UFAC, teve aula com dinossauros teóricos que usam Karl Marx até para fazer um bolo de cenoura. Por alguns momentos de sua fala, chegou a imaginar que aquele peido era algum plano das potências capitalistas, alguma forma de eliminar os pobres do terceiro mundo, acordada depois do “Consenso de Washington”.


Os estudante, que mais riam do que reclamavam, culpavam um ao outro numa felicidade infantil de quem adorou o acontecido. Dessa idade, até nos momentos mais difíceis, conseguem tirar lirismo da ocasião e formular as mais possíveis hipóteses para a autoria do feito. As moças feias eram as mais suspeitas. As bonitas eram vistas como carrapatinhos.


-Credo! Vou trocar de linha! – Disse o cobrador fingindo-se indignado com o produto que saiu de suas entranhas. – Pessoas assim deveriam pegar era o Samu e ir direto para o hospital, para fazer uma operação urgente. Saber se conseguiam salvar ao menos o pé, por que o resto do corpo já está perdido.


O ônibus seguiu todo seu percurso envolvido nesse episódio. Houve pessoas que pioraram sua dor de cabeça, outros sua enxaqueca e todos ao saírem, revoltados, não deixavam de comentar e abominar o autor desconhecido do feito.


Na parada final, na lanchonete culpada por tudo, o cobrador perguntou: onde fica o banheiro?


Sentado, respirando forte e tendo vergonha de si, pensou: hoje todos irão usar o vaso sanitário.


Francisco Rodeigues – f-r-p@bol.com.br


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