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Opinião de especialista: ensino da medicina e ética profissional

Por
Roberto Vaz
Thor Dantas
Há  poucos dias uma matéria jornalística publicada em um site de notícias no Acre deu conta de uma denúncia de suposta prática antiética [leia]por parte de um(a) acadêmico(a) do curso de medicina da UFAC, e seu professor-preceptor, durante atividade habitual de treinamento em serviço em uma unidade de atenção primária da rede assistencial da capital Rio Branco. Merecem esclarecimentos, para o bem da verdade, a sociedade acreana e os jornalistas responsáveis pela matéria, acerca do ensino da Medicina e da ética profissional, que pode ter sido violada menos pelos acusados que pelos acusadores.

A acadêmica em questão, no último ano do curso de Medicina, conduziu a primeira abordagem, constituída de anamnese (entrevista) e exame clínico no, até então, suposto paciente. Após a abordagem inicial, como reconhece o repórter no debate dos comentários susbequentes à matéria, o professor-preceptor responsável discutiu o caso com o(a) acadêmico(a), supervisionando sua atuação, e se responsabilizou, por fim, pela conduta final.


Do ponto de vista das normas e preceitos da bioética, bem como das práticas correntes de ensino médico em qualquer local do Brasil e do mundo, nada de errado ocorreu. Absolutamente nada. É desta forma que o ensino da medicina se dá em qualquer tempo ou lugar. Como bem assinalou, no debate dos comentários, um experiente e respeitado jornalista local, acostumado à apuração e à denúncia, a reportagem não apresentou nenhuma evidência de prática de ilícito pela acadêmica, tampouco por seu professor-preceptor. A acadêmica não se passou por médica, não falsificou documentos, nem tampouco atuou sem supervisão.


O ensino da Medicina é tradicionalmente dividido em ciclo básico, com duração de quatro a quatro anos e meio, a depender da escola médica, e ciclo clínico ou profissional, denominado Internato, com duração, portanto, de um ano e meio a dois anos. O Internato é caracterizado por intenso treinamento em serviço e tem por objetivo consolidar a formação médica, com a aplicação dos conteúdos teóricos adquiridos ao longo do curso, através da prática intensiva das atividades inerentes ao exercício profissional.


Durante o Internato, os internos de Medicina são ainda habitualmente identificados de acordo com o tempo em que falta para se formarem, e a autonomia é dada de acordo com este tempo, tendo mais autonomia os internos que estão no final do ciclo profissional, comparado com aqueles que recém ingressaram no mesmo. Esta autonomia progressiva, dada pelo professor/preceptor, de acordo com o tempo de aprendizado e o desempenho individual de cada aprendiz, aliás, é característica essencial do processo de ensino-aprendizado de qualquer ofício, como única forma de se preparar um profissional para o exercício de sua profissão.


Não existe problema algum em um acadêmico ao fim do sexto ano de Medicina, às vésperas de se formar, em atendimento inicial, de uma consulta de atenção primária, se deparando com queixas extremamente comuns e que, portanto, ele viu por diversas vezes durante seis longos anos, fazer uma entrevista clínica e um exame físico, antes de discutir a conduta com seu professor-preceptor.


Eu acrescentaria ainda, como médico e professor de Medicina, que o atendimento do(a) acadêmico(a) foi, para além de tudo, tecnicamente muito bem feito. Elaborou hipóteses diagnósticas coerentes com o quadro, ponderou prós e contras a essas hipóteses e propôs uma conduta diagnóstica e terapêutica inicial. Discutiu tudo isso com seu professor-preceptor e, juntos, deram os encaminhamentos julgados pertinente. A condução do encontro clínico se deu com maturidade e postura e, acima de tudo, o(a) acadêmico(a) demonstrou possuir os conhecimentos, atitudes e habilidades essenciais para a prática clínica. Dou de público meus parabéns a(o) acadêmico(a). Terei prazer em chamar-lhe de colega dentro de quatro semanas, pois está absolutamente preparado(a) para o exercício de nossa profissão.


Não quero polemizar com profissionais da imprensa, não ganharia nada com isso, muito pelo contrário. Cada um tem seu papel e age conforme seu juízo pessoal. Mas me ocorre de refletir se o tema da ética não merece questionamento também no sentido inverso. Ao admitir que houve supervisão da conduta da acadêmica e afirmar ainda, no calor do debate, e sob as contundentes manifestações de repúdio por parte dos leitores da matéria, que “quem fez a denúncia foi o (…) fui apenas averiguar os fatos”, responsabilizando sua fonte pelo equívoco, a questão que me ocorre é: ao se deparar com uma denúncia e verificar que ela não procede como informada, o indicado não seria abrir mão da matéria? Ainda que ela tenha um grande apelo, não deveriam os fatos falar mais alto que a versão? Não seria assim que recomendaria o código de ética da profissão? E ouvir a coordenação do curso antes de finalizar a matéria, não seria também atitude recomendada no jornalismo?


A matéria parece ainda cometer um erro grosseiro, embora habitualmente praticado pela imensa maioria, em uma sociedade que só recentemente convive com o ensino médico, ao confundir acadêmicos de Medicina com médicos residentes, estes últimos médicos formados, com registro no CRM, legalmente habilitados ao exercício profissional, pós-graduandos de programas de especialização. Sugere, em tom alarmante, que um grupo de acadêmicos quase teria operado, sozinhos, um paciente, até a chegada do “único médico”, algo tão sem propósito que só pode ser visto em filmes de comédias da sessão da tarde.  Na verdade tratava-se de uma equipe habitualmente vista em qualquer hospital do mundo: médicos residentes em programas de especialização, conduzindo um caso sob supervisão de um preceptor especialista, chefe de serviço, e tendo a volta internos de Medicina, cada um desempenhando sua atividade na equipe de forma hierarquizada, de acordo com as competências. Em uma divisão de tarefas habitual em um serviço médico de ensino, os internos são responsáveis pela história e o exame físico, o residente pela prescrição e os procedimentos médicos e o preceptor pela palavra final nas decisões diagnósticas e terapêuticas.


É previsível que neste processo de ensino, passem por nós bons e maus acadêmicos e residentes, assim como temos bons e maus profissionais médicos, advogados, enfermeiros, jornalistas… nos diversos serviços, daqui ou vindos de todo e qualquer local do Brasil. Isto não é exclusividade de ninguém, nem de nenhum lugar. É do ser humano e sua vastidão. É nosso papel identificá-los e diferenciá-los e dar a cada um seu reconhecimento, punição ou auxílio devido. O certo é que ninguém deverá se passar pelo que não é. Estagiários, acadêmicos, especializandos, pós-graduandos se identificarão como tal, bem como terão seu supervisor-preceptor responsável por seu aprendizado, desempenho e conduta.


À população acreana eu diria sem medo de errar: não temam ser atendidos por acadêmicos e médicos residentes sob treinamento. Isso já acontece há algum tempo na Enfermagem, no Direito, está acontecendo ou vai em breve acontecer com Fiosioterapia, Odontologia, Nutrição, Psicologia, Fonoaudiologia, etc. Isto é bom. É parte do processo do desenvolvimento da Medicina. Desde que optou por construir esses processos de formação em seu estado, a sociedade acreana tem experimentado grande evolução em sua prática médica. Eu que comecei a trabalhar no Acre no serviço de Infectologia, ainda no antigo Hospital de Base, em 1999 (não faz tanto tempo), sou testemunha direta do quão mais qualificada é a prática de meu serviço hoje, com residentes e acadêmicos ao meu lado, no Hospital de Clínicas.


Ninguém está sendo cobaia de nada (outra afirmação de apelo alarmista e desconectada de seu real significado, que visa tão somente causar o pânico), pelo contrário, estamos todos sendo beneficiários do contínuo processo de evolução da prática da Medicina. A existência de ensino agrega qualidade aos serviços de saúde e o aprendiz, de graduação ou pós-graduação, estudando, inquirindo e desafiando a todo momento seus tutores, estimula o desenvolvimento da Medicina como um todo em nosso estado, como o faz em todo o mundo. A Medicina no Acre hoje é melhor do que era antes do ensino médico se instalar em seu território, e continuará a evoluir, dentre outros motivos, também por causa dele.


Thor Dantas é médico, professor de Medicina e coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal do Acre


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