A história dos “trotes” de estudantes é muito antiga e inicia-se com as primeiras universidades medievais na Europa. Nestas instituições, Segundo Vasconcelos (1993), “costumavam separar os veteranos dos calouros. Os veteranos assistiam a aulas, no interior das salas e os calouros, de cabeça raspada, do lado de fora, no vestíbulo”. Desse vocábulo, origina-se a denominação vestibular para o concurso de acesso dos calouros nas universidades.
No século XIV e século seguinte, nas universidades de Bolonha, Paris em 1342, e na Universidade de Heidelberg na Alemanha em 1491, respectivamente, os calouros, reclassificados como “bixos e bixas” para ambos os sexos e ainda de “feras” pelos veteranos, tinham pelos e cabelos arrancados, e eram obrigados a beber urina e a comer excrementos antes de serem declarados “domesticados”.
Em Portugal, esses trotes de características “sadomasoquistas” foram introduzidos na Universidade de Coimbra, a partir do século XVIII. De acordo com Zuin (2002), “essas práticas chegam ao Brasil através de estudantes brasileiros oriundos de Portugal”.
Em decorrência do emprego dessa idéia de separatismo criam-se litígios entre veteranos e calouros que culminaram com a morte de um estudante da faculdade de Direito de Olinda, Pernambuco, em 1831, – seria a primeira, de várias vítimas de trotes violentos, no Brasil.
Mas, é a partir de 1980 que se acentua o histórico de práticas de trotes de características depreciativas que deixam marcas, muitas delas fatais, e que hoje devem ser repensados, a partir de seus efeitos de violência explícitos, e sem justificativas socialmente aceitáveis.
Em 1980, Carlos Alberto de Souza, 20 anos, calouro do curso de Jornalismo da Universidade de Mogi das Cruzes (SP), morreu de traumatismo cranioencefálico, resultante das agressões praticadas por estudantes veteranos.
1990, marca a morte de George Mattos, 23 anos, calouro do curso de Direito da Fundação de Ensino Superior de Rio Verde (GO), em função de uma parada cardíaca quando tentava fugir de veteranos que iam lhe aplicar um trote.
Em 22 de fevereiro de 1999, Edison Tsung Chi Hsueh, chinês de Taiwan, calouro da Faculdade de Medicina da USP, foi vítima fatal de afogamento em uma piscina da faculdade durante um trote de calouros.
10 de fevereiro de 2009, Bruno César Ferreira, 21 anos, calouro do curso de veterinária da Faculdade Anhanguera, em Leme, São Paulo. Foi forçado a ingerir bebidas até o estado de coma alcoólico, além de ser obrigado a rolar em uma lona com animais mortos e fezes em decomposição.
Em 2009, o aluno Vitor Vicente de Macedo Silva, 22 anos, do Curso de Física da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro morreu afogado numa piscina de saltos ornamentais (9 m de profundidade). Acredita-se que ele teria sido forçado a saltar na piscina, mesmo sem saber nadar.
Em 2010, estudantes da Unicastelo, em Fernandópolis, foram obrigados a fumar, tirar as roupas íntimas, pedir dinheiro em semáforos e até beber álcool combustível. Nesse mesmo período, na Escola Superior de Propaganda e Marketing, também em São Paulo, um estudante foi agredido, e teve ossos do nariz e do rosto quebrados.
No Acre, até fins da década de 1990, a aprovação em vestibulares da universidade pública significava encher de orgulho e alegrias a familiares e amigos do calouro, que comemoravam com festas, incluindo parabéns, abraços e votos de sucessos, o mais extremos seria apenas o ato de iniciar o curso com a cabeça raspada, até então, por iniciativa do próprio calouro.
Com a evolução dessa prática de “batismo”, algumas novas “brincadeiras” foram sendo somadas àquelas que já se praticavam, mas, ainda em rituais em tom de ordem e de diversão. Mas, é a partir dos anos de 2000, que alguns veteranos começaram a ritualizar esses momentos com atos mais extremos, como se fosse uma espécie de vingança por atos sofridos no ano de seu acesso à universidade, como forma de repasse.
Desta maneira, a soma desses atos passou a fazer parte da rotina anual da universidade pública e, de forma preocupante, já observamos alguns excessos que ocorrem durante as “brincadeiras”, ainda sem muita gravidade. Isto porque, partimos do princípio que ninguém vai a um trote predeterminado a praticar violências, mas estas, quando ocorrem, surgem e evoluem de forma impensada e imensurada durante a realização de um trote.
Com esse ponto de vista não queremos inibir aos veteranos e calouros de comemorarem esse início de uma nova etapa vitoriosa de estudos, pois sabemos que em um contingente de um trote, cerca de 60% dos calouros estão ali, voluntariamente porque querem participar e estão se divertindo; outros 30% são motivados por colegas e querem “inocentemente” apenas matar a curiosidade de vivenciar um trote; e outros 10% são coagidos a essa participação pelos veteranos, mas, incomodam e arrependem-se de estarem envolvidos e, muitas vezes, já não conseguem mais fugir do trote.
O perigo dos trotes é que eles não seguem a nenhuma cartilha de regras ou normas para conduzir atitudes e comportamentos do grupo, mas, estas são colocadas em prática, de forma extemporânea, segundo a iniciativa de cada um dos veteranos participantes, e estes estão ali gozando da condição de mandante.
Mas, o que se espera a partir dessa visão externa do conteúdo de um trote? É importante que a universidade pública reconheça sua parcela de co-existência com esses trotes e mostre aos acadêmicos veteranos, através do DCE e CA’s, possíveis males que podem ser ocasionados por excessos que surgem e evoluem durante esses trotes através de algumas atitudes extremas, de cunhos “sadomasoquistas”, que podem atingir a honra, a integridade e até a dignidade dos calouros, pois algumas atitudes impensadas podem até redundar em atos ilícitos, passíveis de responsabilidades civis e penais, enquadrados como crimes contra a honra e contra a liberdade pessoal. Isto porque, segundo a Constituição Federal, em seu art. 5º estabelece que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se (…) a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…), assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Desta forma, é através da informação e da boa condução dos trotes, que poderemos ver esses eventos num futuro próximo, não como uma forma “depreciativa” da individualidade do calouro e ao mesmo tempo uma afronta a dignidade e a liberdade do ser humano, mas o trote, como uma forma de inclusão, integração e aceitação dos novos colegas.
Aprovado na Câmara Federal e ainda tramita no Senado, projeto de lei que pretende disciplinar e proibir o constrangimento dos calouros, a exposição deles à situações vexatórias e ofensas graves, além de garantir a integridade física dos novatos, recomenda às universidades à abertura de processos disciplinares contra os veteranos violentos e que apliquem multas (de 1.000 a 20.000 reais), suspensão de um a seis meses e até expulsão.
Até a presente data dois estados brasileiros saíram na frente e dão o exemplo de preocupação e zelo pelo ingresso de calouros nas suas universidades públicas, dinamizando esse acesso e coibindo, com leis próprias, os chamados trotes violentos, são os Estados de São Paulo e de Santa Catarina, atitudes essas que deveriam ser seguidas pelos demais estados brasileiros.
Referências Bibliográficas
MATTOSO, G. O calvário dos carecas: a história do trote estudantil. São Paulo, EMW, 1985.
VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis, Vozes, 1978.
VASCONCELOS, Paulo Denisar. A violência no escárnio do trote tradicional. Santa Maria, UFSM, 1993.
ZUIN, Antônio Álvaro Soares. O trote na universidade-Passagens de um rito de iniciação. Cortez, São Paulo, 2002)
ZUIN, Antônio Álvaro Soares. O Trote no Curso de Pedagogia e a Prazerosa Integração Sadomasoquista. Educ. Soc. [online]. Ago. 2002, vol.23, no.79, p.243-254. Disponível na World Wide Web: Scielo. ISSN 01017330.
Raimundo Muniz Penha, Acadêmico de Direito – FAAO
3º Ano Noturno